segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Gardnerella vaginalis: um anaeróbio e muitas facetas patogênicas relevantes para infertilidade, aborto e gestação

 


A Vaginite Bacteriana (VB) é a infecção vaginal polimicrobiana mais comum em mulheres em idade reprodutiva, geralmente causada por bactérias anaeróbias, e é a causa de vários sintomas, como: corrimento vaginal homogêneo e fétido, supercrescimento bacteriano e aumento da produção de aminas (putrescinas, cadaverinas e trimetilamina) que contribuem para um pH vaginal mais alto e a presença de clue cells (MACHADO & CERCA, 2015; KALIA, SINGH & KAUR, 2020).

            Entre as espécies microbianas que causam VB, merece papel de destaque a Gardnerella vaginalis, que é a bactéria anaeróbia mais estudada, e também considerada a principal espécie envolvida no desenvolvimento da infecção (MACHADO & CERCA, 2015).

            Além de representar a infecção mais prevalente nas mulheres, a VB tem sido associada a doenças com graves consequências para a saúde pública, incluindo: doença inflamatória pélvica, infecções pós-operatórias, aquisição e transmissão do HIV e outras ISTs, nascimento prematuro, aborto (KUON et al, 2017) ,infecções placentárias e no fluído amniótico (ROBINSON et al 2019), e vários resultados adversos na gravidez (MACHADO & CERCA, 2015).


Considerando a prevalência da VB e a Gardnerella vaginalis com o patógeno mais relevante da infecção, apresentamos a seguir algumas descobertas científicas recentes sobre esta bactéria.

            G. vaginalis é o único anaeróbio que exibe os seguintes fatores de virulência: capacidade de adesão às células epiteliais vaginais, capacidade de produzir biofilmes e atividade citotóxica (citolisinas/formação de poros), além de permitir quando em biofilme a incorporação de outros anaeróbios, o que torna a VB polimicrobiana, e de secretar outros fatores de virulência como as enzimas: fosfolipase, protease e sialidases, além da citolisina mencionada acima (MACHADO & CERCA, 2015; ROBINSON et al 2019).

            A capacidade de adesão às células do epitélio vaginal está associada a produção da enzima sialidade, que promove a degradação do muco, sem promover inflamação histológica evidente, o que causa uma esfoliação epitelial e a formação das chamadas clue cells, que nada mais são do que células epiteliais vaginais, impregnadas de G. vaginalis em sua superfície (KALIA, SINGH & KAUR, 2020).

            Além disso, as sialidases promovem a degradação do muco vaginal tornando sua consistência fluida que é característica na VB, o que contribui para o aumento dos riscos de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e ascendentes (ROBINSON et al 2019). Em grávidas infecção uterina ascendente e nascimento pré-termo podem ocorrer com G. vaginalis e outros patógenos potenciais, bem como infecção recorrente do trato urinário causada por Escherichia coli (KALIA, SINGH & KAUR, 2020).

            Considerando que o tampão mucoso ou rolha Schroeder, nada mais é do que muco e estaria sujeito aos efeitos da sialidade produzida pela G. vaginalis, isso poderia explicar em parte, o início do mecanismo fisiopatogênico de nascimento pré-termo, abortamento de repetição (KUON et al, 2017), infertilidade, infecções placentárias e no fluído amniótico (ROBINSON et al 2019), e várias complicações na gravidez e parto (MACHADO & CERCA, 2015).

        Outra ponderação sobre mecanismo fisiopatogênico de que infecções como VB causada por G. vaginalis pode causar abortamento, seria o fato de que toda infecção ativa, secreta citocinas e quimiocinas, que recrutam células do sistema imune inato (macrófagos, células dendríticas e células NK), que amplificam a resposta inflamatória local, rompendo o equilíbrio imunitário, que é essencial para implantação, placentação e transformação dos vasos sanguíneos, que possibilitam o seguimento da gestação (KUON et al, 2017).

            Continuando com os fatores de virulência presentes na G. vaginalis, outra enzima relevante é a citolisina, capaz de produzir a formação de poros nas células do epitélio vaginal, um efeito citotóxico que promove a invasão do tecido, e consequentemente o estabelecimento da infecção (ROBINSON et al 2019).

Uma vez que a bactéria se fixa e invade à mucosa do epitélio vaginal, G. vaginalis inicia seu processo de replicação na mucosa e a formação de um biofilme fino,

que permite a fixação de outras espécies. Esta formação de biofilme aumenta a resistência de G. vaginalis contra bactérias benéficas da microbiota vaginal, os Lactobacillus spp., e aumenta sua resistência à ação antimicrobiana (KALIA, SINGH & KAUR, 2020), principalmente pela matriz produzida pelo biofilme microbiano.

            Em conjunto essas etapas podem explicar o mecanismo patogênico empregado pela G. vaginalis para causar a VB, e mais ainda pode alertar para a necessidade de introduzir na prática clínica ginecológica rotineira a necessidade de investigar a presença, ainda que sugestiva através de um GRAM DE SECREÇÃO VAGINAL, de infecções causadas por Gardnerella vaginalis em pacientes jovens, com problemas de infertilidade, grávidas, pós-menopausadas e em idade reprodutiva, uma vez que parte desta infecções podem ser assintomáticas e não fecham a tríade clássica dos critérios de Amsel, tão corriqueiramente empregados.

            Ressalto ainda, a importância de sempre que possível ampliar o diagnóstico da VB para análises laboratoriais moleculares (PERFIL DE VAGINOSE E MICROBIOMA VAGINAL), considerando sempre a capacidade incorporativa de novas bactérias ao biofilme que a G. vaginalis possui, destacando a necessidade de investigar a presença de bactérias frequentes na VB como Atopobium vaginae, entre outras bactérias anaeróbias, o que pode tornar a infecção de difícil resolutividade quando antimicrobianos são usado indiscriminadamente e sem direcionamento para o perfil de resistência bacteriano presente na infecção, levando em consideração o pouco arsenal terapêutico disponível para tratamento da VB. 


Referências

Kalia N.,  Singh J., Kaur M. Microbiota in vaginal health and pathogenesis of recurrent vulvovaginal infections: a critical review. Ann Clin Microbiol Antimicrob. 2020 Jan 28;19(1):5.  doi: 10.1186/s12941-020-0347-4.

 

Kuon RJ, Togawa R Vomstein K,  Weber M,  Goeggl T,  Strowitzki T,  Markert UR, Zimmermann S,  Daniel V,  Dalpke AH, Toth B. Higher prevalence of colonization with Gardnerella vaginalis and gram-negative anaerobes in patients with recurrent miscarriage and elevated peripheral natural killer cells J Reprod Immunol. 2017 Apr;120:15-19.  doi: 10.1016/j.jri.2017.03.001. Epub 2017 Mar 30.

 

Machado A, Cerca N. Influence of Biofilm Formation by Gardnerella vaginalis and Other Anaerobes on Bacterial Vaginosis J Infect Dis. 2015 Dec 15;212(12):1856-61.  doi: 10.1093/infdis/jiv338. Epub 2015 Jun 16.

 

Robinson LS, Schwebke J,  Lewis WG,  Lewis AL. Identification and characterization of NanH2 and NanH3, enzymes responsible for sialidase activity in the vaginal bacterium Gardnerella vaginalis. J Biol Chem. 2019 Apr 5;294(14):5230-5245.  doi: 10.1074/jbc.RA118.006221. Epub 2019 Feb 5.



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